quinta-feira, outubro 09, 2003

tique-taque

Saindo um pouco do clima meloso que tem me preenchido nos últimos dias, aí vai outro texto bem antigo. É incrível como tem coisas que não mudam, e cada vez que eu releio esses rabiscos antigos eu tenho mais certeza de que eles não envelhecem...

TIQUE-TAQUE
(algum momento entre abril e maio de 2003...)

“Corre filha, que já estamos atrasadas!�
Nunca entendi muito bem o que é o tempo. Ao longo de minha (não muito longa) existência, o motivo pelo qual contamos e nos preocupamos com minutos, horas e dias sempre foi um grande mistério, daqueles que recheiam os pensamentos com milhares de interrogações.
Lembro da primeira vez em que me dei conta da existência (e da suposta importância) do tempo. Os relógios entraram em minha vida junto com a aventura do jardim de infância. Sim, por que até então, pouco me importava se eram 6 da manhã ou 3 da tarde: toda hora era hora de brincar. Sábados e domingos perdiam seu sentido e, contanto que houvesse sol, pouco me importava se estávamos em março ou setembro.
Quanto mais eu avançava na incansável linha dos anos, mais o tempo controlava minha vida. Aos pouquinhos, ele, o relógio, invadiu meu espaço e minha rotina. Quando percebi esse domínio, eu já havia, há muito, deixado o jardim de infância.
Na minha vida de anteprojeto de adolescente tudo era cuidadosamente organizado ao longo dos dias. Acordar, estudar, comer, descansar, telefonar, brincar, dormir: um mero atraso ou mudança transformava em caos minha rotina, além de ser garantia de uma série de reclamações paternas e maternas.
Foi então que, ingenuamente, dei meu grito de independência e afastei de mim o tique-taque dos relógios. Só então percebi que não era apenas a minha vida que estava sendo invadida e controlada. Era o mundo todo!
Ainda que eu me recusasse a observar os ponteiros, sempre um parente ou professor inconveniente fazia questão de denunciar o meu atraso. Ainda que eu dissesse que as segundas eram idênticas aos sábados e os outubros a janeiros, não posso negar que eu preferia os últimos. É, se o mundo se guia por um cronômetro gigante, o que EU posso fazer?
“Vamos logo menina, que já passamos da hora e não podemos mais atrasar!�
Passaram-se muitos anos, meses e horas, e eu ainda não compreendo o porquê desse tempo que seguimos. Não vejo a lógica que faz com que hoje seja quarta e não sexta, que 31 de dezembro seja o último dia do ano ou o porquê do dia seguinte começar à meia-noite e não às 5 da manhã. O relógio em cima da estante me fita, e com seu sorriso enigmático alerta que já não posso mais pensar, pois é hora de ir. Pegunto-me se um dia ele me dará um instante livre para solucionar esse mistério. E enquanto atravesso a porta rumo à obrigação que me chama, algo me diz que quanto mais tentamos cronometrar o nosso tempo, menos tempo temos para cumprir nossa maior tarefa: simplesmente viver, sem mais complicações.
Como uma criança que ainda não conhece o jardim de infância...

(Hold me now, I'm six feet from the edge and I'm thinking: maybe six feet is so far down...)